Direito de retenção no processo de insolvência
O que é o direito de retenção?
O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Este é o critério geral do direito de retenção.
Contudo, para além do critério geral existem também certos casos especiais de direito de retenção, que o legislador achou por bem autonomizar face ao critério geral. Um desses casos é o direito de retenção do promitente-comprador no contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, em que tenha havido entrega (traditio) da coisa, sobre o crédito resultante do incumprimento imputável ao promitente-vendedor.
Insolvência do promitente-vendedor:
Em caso de insolvência do promitente-vendedor num contrato-promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional (que não foi registada na Conservatória de Registo Predial), em que tenha havido a entrega do bem (entrega das chaves do imóvel), e em que tenha sido pago o sinal, o promitente-comprador que seja consumidor goza do direito de retenção sobre o imóvel, para garantir o seu crédito relativo ao sinal em dobro ou para requerer a execução específica (ou seja, requerer que o Tribunal profira uma sentença que produza os efeitos da transferência da propriedade do imóvel da esfera do promitente-vendedor para a esfera do promitente-comprador).
Contrato-promessa com eficácia real:
Face ao regime estabelecido no artigo 106.º, n.º1 do CIRE é pacífico que nos contratos-promessa com eficácia real (ou seja, os contratos-promessa que foram registados na Conservatória de Registo Predial) o promitente-comprador beneficia do direito de retenção, mesmo que não seja consumidor.
Por outro lado, nesse caso, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca.
Contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional - Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014 do STJ:
Porém, o CIRE não regula os efeitos da declaração de insolvência sobre os contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido a entrega da coisa, ou seja, para os contratos-promessa em que, não se tendo procedido ao respetivo registo na conservatória, o promitente-comprador pagou o sinal e após isso passou a habitar o imóvel.
Ora, essa questão gerou muita controvérsia na Jurisprudência (decisões dos Tribunais superiores) e na Doutrina.
Assim, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014 (para consultar o Acórdão carregar neste link), proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça veio resolver a questão, fixando jurisprudência no sentido de que, nesse caso, o promitente-comprador que seja consumidor goza do direito de retenção sobre o imóvel, o qual prevalece sobre a hipoteca.
Direito de retenção vs hipoteca:
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, no processo de insolvência do promitente-vendedor, em caso de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, com entrega da coisa e após o pagamento do sinal:
- o promitente-comprador que seja consumidor goza de direito de retenção sobre o imóvel,
- e que esse direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente.
Assim, apesar de ambos os créditos serem qualificados como créditos garantidos o crédito do promitente-comprador em relação ao sinal em dobro (ou ao aumento do valor da coisa) será graduado e pago primeiro que o crédito do credor hipotecário (titular do direito real de garantia emergente da hipoteca).
A solução já era pacífica quanto aos contratos-promessa com eficácia real, ou seja, aos contratos-promessa que foram registados na Conservatória do Registo Predial.
Proteção só vale para o "consumidor"; ónus da prova:
Esta doutrina só vale, contudo, se o promitente-comprador for também consumidor. Ora, nos termos da Lei de Defesa do Consumidor aprovada pela Lei n.º 24/96, de 1 de Julho, com as sucessivas alterações, “consumidor é todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Assim, no caso do contrato-promessa, consumidor há de ser a pessoa que adquire a casa para o seu uso privado, com vista a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares.
Ora, de acordo com a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014 o promitente-comprador tem o ónus da prova quanto à sua qualidade de consumidor. Ou seja, para que possa beneficiar do direito de retenção sobre o imóvel destinado a garantir o seu crédito sobre o valor do sinal em dobro o promitente-comprador vai ter que alegar e provar os factos constitutivos do conceito legal de consumidor.
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